sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

ACORDÃO: Santa Casa da Misericórdia de Gavião

Sumário:
1. Face ao preceituado nos arts. 10,11 e 12 da Concordata de 2004, não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas, regidos pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobe as mesmas .
2. Os tribunais portugueses apenas são competentes para a aplicação dos regimes jurídicos instituídos pelo direito português - nomeadamente no DL119/83, que institui o regime das Instituições Particulares e Solidariedade Social – quanto às actividades de assistência e solidariedade, exercidas complementarmente pelas pessoas jurídicas canónicas .

3. Está excluída – desde logo, como decorrência do princípio constitucional da separação da Igreja e do Estado - a possibilidade de outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto ou decisão da competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – no caso, a recusa de homologação do resultado eleitoral para os corpos gerentes de uma Misericórdia, estatutariamente imposta como condição para a investidura - não podendo , por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas.

 
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.A Santa Casa da Misericórdia de Gavião intentou contra AA, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral daquela instituição, procedimento cautelar comum, requerendo a intimação judicial da requerida para, no prazo judicialmente fixado, dar posse aos novos corpos eleitos para a direcção daquela instituição, em acto eleitoral não homologado pelo Ordinário Diocesano, fundando-se no direito a ver empossados nas suas funções os membros da lista vencedora e invocando prejuízos decorrentes no atraso da investidura dos corpos sociais eleitos, a acautelar através da medida cautelar requerida.

Deduzida oposição e dirimido o incidente de verificação do valor da causa, foi proferida decisão a indeferir a providência requerida.

Inconformada, a requerente apelou para a Relação de Évora que –revogando a decisão que, na 1ª instância, decretara a improcedência da providência cautelar peticionada – declarou o tribunal comum materialmente incompetente para a causa, considerando que a mesma se situa no âmbito da competência das autoridades eclesiásticas .
2.É desta decisão que vem interposto o presente recurso de revista – importando salientar que ao mesmo é aplicável o novo regime de recursos, aprovado pelo DL 303/07, uma vez que se trata de causa iniciada em Junho de 2008: daqui decorre a qualificação do recurso como «revista», como consequência do desaparecimento da figura do agravo, a vinculação do recorrente ao ónus de alegação conjuntamente com a interposição do recurso, em prazo alargado ( que se mostra cumprido) e a aplicação dos novos valores das alçadas (tendo sido atribuído a esta causa precisamente o valor de €30.000,01 –fls. 522).

Por outro lado, o excepcional acesso ao STJ – já que está em causa decisão proferida num procedimento cautelar – encontra fundamento no preceituado no art. 387º-A do CPC, conjugado com o disposto no art.678º,nº2, al. a), primeira parte, enquanto prescreve que é sempre admissível recurso das decisões que violem as regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
Saliente-se que, no caso ora em apreciação, não está apenas em causa um problema de definição da competência em razão da matéria dos tribunais comuns, envolvendo antes uma questão de delimitação do âmbito da jurisdição exercida pelo conjunto dos tribunais portugueses no confronto dos tribunais e autoridades eclesiásticas, decorrente, nomeadamente, da reserva de jurisdição que é feita a seu favor pela Concordata.
3.A entidade recorrente encerra a sua alegação com as seguintes conclusões que - como é sabido – delimitam o objecto do recurso interposto:
1) As pessoas colectivas de direito canónico, como a Recorrente, que se proponham fins de assistência e beneficência, regem-se por duas ordens jurídicas distintas, a saber: na esfera da actividade espiritual, pelo direito canónico; e na esfera temporal, como pessoa colectiva de solidariedade social, pelo direito nacional;

2) Nos presentes autos está em causa o contencioso eleitoral das Misericórdias, sendo que este fica excluído da apreciação do Ordinário Diocesano por força do preceituado no Estatuto das IPSS (Dec.-Lei n.° 119/83),

3) são competentes os tribunais comuns para apreciar a legalidade ou ilegalidade do processo eleitoral;

4) a eleição de corpos gerentes não se trata de uma questão meramente de ordem interna da Irmandade, dizendo respeito ao interesse público, cabendo a sindicância aos Tribunais, enquanto órgãos de soberania do Estado,

5) A declaração de incompetência dos tribunais comuns é inconstitucional por impedir a tutela jurisdicional efectiva, por violação do artigo 20.° da CRP.

NESTES TERMOS.

E nos melhores de Direito, dado que seja por V.Exas. - Venerandos Conselheiros - o V. douto suprimento, deve ao presente recurso ser dado provimento porque devido, declarando-se competentes os tribunais comuns, revogando-se o douto Acórdão proferido pela Relação de Évora e ordenando-se o conhecimento das demais questões suscitadas em Apelação, com o que se fará a desejada JUSTIÇA.

A Recorrente encontra-se isenta de custas judiciais, cfr. artigo 2.°, n.° 1 al. c) do Código das custas Judiciais.

Não foram apresentadas contra-alegações.
4. As instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

1 - Em 8 de Dezembro de 2007, pelas 15 horas, teve lugar no Salão das Sessões da Santa Casa da Misericórdia, a Sessão Ordinária da Assembleia Geral, sendo ponto da ordem de trabalhos a eleição dos corpos gerentes para o triénio 2008/2010.

2 - Estiveram duas listas (A e B) sujeitas a sufrágio e o resultado eleitoral deu a vitória à Lista A, com 183 votos, ficando vencida a Lista B, com 51 votos.

3 - Os resultados eleitorais foram comunicados ao Ordinário Diocesano em 13 de Dezembro de 2007. '

4 -No dia 6 de Fevereiro de 2008, deu entrada nos serviços administrativos da requerente um requerimento subscrito pela Irmã BB, pedindo a emissão de lista completa de todos os Irmãos da Stª Casa, onde conste a data da sua admissão, bem como a data do último pagamento de quota - cfr. instrumento de fs. 64, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

5 - A requerente não concedeu a informação solicitada.

6 - Em 18 de Março de 2008, o Delegado Diocesano para as Irmandades das Misericórdias dirigiu à Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Sf Casa da Misericórdia de Gavião uma missiva a dar conta da decisão de não aprovar e não homologar os corpos gerentes eleitos em 8 de Dezembro de 2007 - cfr. instrumento de fls. 60 e 61, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

7 - Para cabal esclarecimento da situação, a requerente solicitou, em 24 de Março de 2008, a fundamentação da decisão proferida e a prestação de esclarecimentos acerca do teor daquela missiva - cfr. instrumento de fls. 73 e 75, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.

8-O Ordinário Diocesano ainda não homologou o acto eleitoral e a Mesa da Assembleia Geral da St3 Casa da Misericórdia de Gavião ainda não empossou em funções a lista vencedora.

9 - Os corpos gerentes da requerente, eleitos para o triénio 2006/2008, mantêm-se em funções.
10 - O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da requerente, CC , faleceu no dia 4 de Abril de 2007.

11 - A Vice-Presidente DD apresentou pedido de demissão no dia 6 de Junho de 2008.

12 - A requerida apresentou pedido de demissão do cargo de Ia Secretária no dia 17 de Julho de 2008.
5. Como dá nota o acórdão recorrido, constitui orientação reiterada do STJ a que se traduz em afirmar que os tribunais portugueses carecem de competência para dirimir os litígios decorrentes do processo eleitoral das pessoas colectivas canónicas, nomeadamente as Misericórdias, por se tratar de matéria situada no âmbito do foro eclesiástico: vejam-se, nomeadamente os acs. de 26/4/07, in CJ II/97, pag.48, de 27/1/05, proferido no p.04B4525, de 17/2/05, proferido no p.05B116, onde se afirma:

As associações assim constituídas, de harmonia com o artº 4° da Concordata de 1940 - então em vigor - "... podem adquirir bens e dispor deles nos mesmo termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica...", e se estas associações, para além dos fins religiosos, "... se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários..., ficam, na parte respectiva, também sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tomará efectivo através do Ordinário competente, e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza".
Tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC.
É certo que, conforme decorre do disposto no artº 40° do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL 119/83 de 25/2, as organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos também desenvolverem actividades enquadráveis no âmbito das prosseguidas pelas pessoas colectivas de solidariedade social, estão, quanto a tais actividades, sujeitas ao regime previsto no referido Estatuto. Mas, tal como dispõe o artº 48° do mesmo Estatuto, "sem prejuízo da tutela do Estado, "compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais".

Por sua vez, o artº 69° ainda desse mesmo Estatuto das IPSS, que se reporta ao regime jurídico aplicável, dispõe que às irmandades da Misericórdia "aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias", ressalvando-se, porém, - e este é o critério decisivo - tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social " (n°s 1 e 3 da citada norma).

O n° 2 do mesmo preceito legal estabelece que em tudo quanto na secção 2ª do capítulo 3° do mencionado diploma (que versa sobre as irmandades) não se encontre especialmente estabelecido, essas irmandades regular-se-ão pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.

Temos, pois, que os institutos e associações que tenham por fim o exercício da actividade especificamente religiosa são estranhos aos fins próprios da administração pública, mas se prosseguirem fins de beneficência ou de assistência, já ficarão sujeitas, nessa parte - mas apenas nessa parte - ao ordenamento jurídico geral instituído pelo Estado para as instituições particulares da mesma índole, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos.

Assim, como refere no sobredito Ac. do STJ de 10-7-85 - que vimos seguindo de perto - sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)".

Ainda na esteira do mesmo aresto, "... se ao Ordinário diocesano cabe, por força da lei a aprovação dos corpos gerentes das Misericórdias, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil' (sic).

Assim, as (pretensas) irregularidades imputadas nos presentes autos à autoria da Mesa na "admissão de novos irmãos" não se situam num domínio em que se imponha o exercício de uma qualquer tutela (pública) do Estado, nem respeitam especifica e directamente à prestação dos fins assistenciais ou de solidariedade social da instituição, como bem se salienta no acórdão recorrido.

Encontra-se em causa, tão-somente, a vida interna ou inter-orgânica da irmandade em causa (relativa à filiação ou adesão de novos irmãos como seus membros efectivos) cuja fiscalização e tutela competem, por força do citado artº 48°, ao "Ordinário Diocesano".

Não cabe aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação numa dado instituto eclesial (como é o caso de uma Misericórdia), e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.
Aderindo-se inteiramente a este entendimento, bastaria, para decidir o presente recurso, remeter para a fundamentação constante dos acórdãos citados. Considera-se, porém, que a situação dos autos envolve duas particularidades que justificam algum desenvolvimento:

- a primeira delas, prende-se com a circunstância de , perante a localização temporal do presente litígio, já ser convocável o texto da Concordata aprovada em 2004;

- a segunda especificidade conexiona-se com a natureza da pretensão formulada, reportada, não à impugnação de actos inseridos no processo eleitoral, mas antes à «investidura judicial» dos titulares eleitos em acto que a requerente tem por válido, pretendendo-se que o tribunal comum trate de sindicar os fundamentos para a não homologação do resultado eleitoral pela entidade eclesiástica competente, procedendo a uma espécie de«suprimento da recusa»do acto de homologação.
6. Não nos parece que o novo texto Concordatário ponha minimamente em causa o entendimento segundo o qual os aspectos estruturais, internos ou intra-orgânicos de uma «associação pública de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica», e tendo como fins e atribuições, não apenas a prática de actividades de solidariedade social, mas também a «realização de actos de culto católico», por essencialmente conexionados com a ordem jurídica canónica, são da jurisdição das autoridades e do foro eclesiástico.

Seria, na verdade, incongruente com a natureza que incontestavelmente assiste à entidade requerente de pessoa colectiva canónica que devesse incumbir aos tribunais ou autoridades estaduais uma intromissão na vida interna de tal associação de fiéis, regida pela ordem jurídica canónica, em tudo aquilo que se não prenda, de modo directo e imediato, com uma actividade de realização de prestações assistenciais : é que, sendo obviamente unitários os órgãos da pessoa colectiva canónica, compete-lhes prosseguir, desde logo e em primeira linha, os fins e atribuições de índole religiosa da entidade em cujo substrato orgânico se inserem – e não apenas as actividades extrínsecas de solidariedade social , em nome das quais – e em homenagem ao interesse público que também lhes subjaz – lhe foi outorgado o estatuto de instituição de solidariedade social.
Como dá nota o atrás citado ac. de 26/4/07, a principal diferença de regimes, nesta sede, situa-se no texto do art.11º da Concordata de 2004, segundo o qual as pessoas jurídicas canónicas, decorrentes do princípio da livre organização da Igreja Católica proclamado pelo art. 10º - e que inteiramente se mantém e reforça - se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades.

Pretendeu-se com esta norma fazer coincidir as regras de jurisdição e competência com as normas de direito material aplicáveis pelo foro eclesiástico e pelos tribunais e autoridades públicas, pondo termo à possibilidade – que efectivamente se verificava anteriormente de:

- os regimes instituídos pelo direito português e aplicáveis às entidades que, para além de fins religiosos , se propunham também fins de assistência ou beneficência, serem «tornados efectivos através do Ordinário competente», por força do estatuído no art.IV da Concordata de 1940;

- poderem eventualmente os tribunais portugueses, por força da articulação das regras de competência internacional com as «normas de conflitos» vigentes, terem de aplicar o Direito Canónico à dirimição de certos e determinados litígios ( cfr, a situação versada no ac. 268/04 do TC).

Continua, porém, a resultar claramente do teor do art. 12º da Concordata de 2004 que as pessoas jurídicas canónicas que , além de fins religiosos, prosseguem fins de assistência e solidariedade desenvolvem a sua actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português: ou seja, a aplicabilidade da ordem jurídica nacional não tem lugar quanto à regulação dos aspectos estruturais, orgânicos ou internos das pessoas colectivas canónicas, mas apenas quanto à disciplina de certas actividades ,extrínsecas e complementares aos fins estritamente religiosos, envolvendo aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público ( até porque, em muitos casos, o exercício de tal actividade prestacional envolve o recebimento de apoios ou subsídios públicos).

E este entendimento é inteiramente confirmado, no nosso ordenamento jurídico interno, já que o art . 48º do DL.119/83 reafirma o princípio da tutela da autoridade eclesiástica na orientação – e na vida interna - das instituições, envolvendo, nomeadamente, a aprovação dos respectivos corpos gerentes.
7.Como atrás se salientou, o presente procedimento cautelar apresenta especificidade relevante relativamente aos casos de contencioso eleitoral das Misericórdias que frequentemente vêm sendo apreciados e jurisprudencialmente resolvidos: na verdade, o que a A. pretende é, - não questionar a validade e regularidade de actos integrados no procedimento eleitoral, peticionando perante a ordem judiciária portuguesa o decretamento da respectiva invalidade, - mas antes, afirmando a inteira validade do processo eleitoral e dos resultados da eleição, formular, no âmbito da justiça cautelar, uma pretensão de investidura dos eleitos nos respectivos cargos sociais , em termos análogos aos que, em geral, estão previstos no art. 1500º do CPC.

Tal pretensão depara-se, porém com uma dificuldade, decorrente de – quer os Estatutos da requerente (art. 13º, nº2) , quer a própria lei ( art.48º do DL 119/83) - preverem e exigirem expressamente a «homologação » ou «aprovação» dos corpos gerentes pela autoridade eclesiástica – o Ordinário Diocesano.

Não pondo a recorrente directamente em causa a validade de tal norma estatutária, acaba por formular um verdadeiro pedido de suprimento da recusa de homologação dos resultados eleitorais, - análogo ao previsto nos «processos de suprimento», regulados nos arts.1425º e segs. do CPC, - implicando obviamente o conhecimento do mesmo que o tribunal comum fosse sindicar os fundamentos da recusa de homologação do resultado eleitoral pela autoridade eclesiástica (cf. a matéria articulada sob os nºs32º a 47º da petição).
Ou seja: face à pretensão da requerente, a tarefa do tribunal comum não se traduziria apenas em sindicar da estrita legalidade, face às disposições de direito português tidas por aplicáveis, de actos de um procedimento eleitoral ( o que, desde logo, suscitava a dúvida sobre se a tal matéria, por ligada à vida interna de uma pessoa colectiva canónica e claramente diferenciada do plano das actividades externas de solidariedade social, não seria antes aplicável o Direito Canónico ), mas antes de analisar e valorar criticamente os fundamentos da decisão de recusa de homologação pela competente autoridade eclesiástica, decretando eventualmente a falta de fundamento de tal recusa, e, em consequência, «dispensando» a homologação estatutariamente exigida como condição da investidura no cargo social.

Só que uma tal actividade está obviamente vedada aos tribunais portugueses, já que a sua realização , ao implicar que o órgão judiciário fosse sindicar os fundamentos substanciais de um acto ou decisão provindo da autoridade eclesiástica competente, colidiria frontalmente com o princípio constitucional da separação da Igreja e do Estado , proclamado no art. 41º, nº4 da Constituição.

Tal princípio envolve, para alem da não confessionalidade do Estado, a garantia da não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto, «não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas , a não ser na medida em que, por via normativa, regulam a liberdade de organização e associação privada e o direito de reunião e manifestação, e outros direitos instrumentais da liberdade de culto»(CRP Anotada, G: Canotilho e V. Moreira, 1993, pag.244)

Seria, deste modo, solução normativa manifestamente colidente com o referido princípio constitucional a que se traduzisse em outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto praticado pela competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – não podendo , por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas.

E, ao contrário do sustentado pela recorrente, esta solução em nada colide com o direito de acesso aos tribunais, que naturalmente não implica que tenha necessariamente de ser atribuída aos tribunais portugueses jurisdição e competência para a dirimição de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos jurídicos.

8.Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento à revista.
Sem custas, por delas estar subjectivamente isenta a entidade recorrente, nos termos do art. 2º do CCJ.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Ferreira de Sousa
Pires da Rosa

Data do Acordão: 17-12-2009


Votação: UNANIMIDADE


Texto Integral: S

Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA

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