terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Discurso do Papa aos membros do Tribunal da Rota Romana

Caros membros do Tribunal da Rota Romana!

Tenho prazer de encontrá-los neste encontro anual por ocasião da inauguração do ano judicial. Uma cordial saudação ao vosso Colégio dos Prelados Auditores, Monsenhor  Antoni Stankiewicz, que agradeço pelas amáveis palavras. Saúdo os Oficiais, os Advogados e os outros colaboradores deste Tribunal, como também todos os presentes. Neste momento dá-me a oportunidade de renovar a minha estima pela obra que desenvolveram a serviço da Igreja e de encorajar-vos a um sempre melhor empenho em um setcor tão delicado e importante para a pastoral e para a “salus animarum.”

O relacionamento entre o direito e a pastoral esteve no centro do debate pós-concílio sobre o direito canónico. A observação do Venerável Servo de Deus João Paulo II, que diz que “não é verdade que para ser mais pastoral o direito deve ser menos jurídico” (Discurso à Rota Romana, em 18 de janeiro de 1990, n. 4: AAS 82 [1990], p. 874) expressa o superamento radical de uma aparente contraposição. “ A dimensão jurídica e aquela pastoral – dizia – estão inseparavelmente unidas na Igreja peregrina sob essa terra. Antes de tudo, há uma harmonia, decorrentes do objetivo comum: a salvação das almas” (ibidem).

No meu primeiro encontro convosco em 2006, procurei evidenciar o autêntico sentido pastoral dos processos de nulidade matrimonial, fundado no amor pela verdade (cfr Discurso à Rota Romana  em 28 de janeiro de 2006: AAS 98 [2006], pág. 135-138). Hoje gostaria de me firmar na consideração da dimensão jurídica que é inerente na actividade pastoral de preparação e admissão ao matrimónio, para procurar colocar à luz o vínculo entre tais actividades e os processos jurídicos matrimoniais.

A dimensão canónica da preparação ao matrimónio talvez não seja um elemento de imediata percepção. De facto, por uma parte constata-se como nos cursos de preparação ao matrimónio as questões canónicas ocupam um lugar muito modesto, quase insignificante, enquanto se tende a pensar que os futuros esposos possuem um interesse muito pequeno pela problemática reservada aos especialistas. Por outra parte, embora não exclua nenhum a necessidade de actividades jurídicas que precedem o matrimónio, assegurando que “nada se oponha a sua celebração válida e lícita” (CIC, can. 1066), é difundida a mentalidade segundo a qual o exame dos esposos, as publicações matrimoniais e os outros meios oportunos para cumprir as necessárias investigações pré-matrimoniais (cfr ibid., can. 1067),  entre as quais se colocam os cursos de preparação matrimonial, constituam o cumprimento de aspectos meramente formais.

Na verdade, é frequentemente assumido que, ao admitir o casal para o matrimónio, os pastores deveriam proceder com brandura, porque está em jogo o direito natural das pessoas de se casarem.

É bom, a propósito, reflectir sob a dimensão jurídica do próprio matrimónio. É um argumento no qual sinalizei no contexto de uma reflexão sobre a verdade do matrimónio, na qual afirmava entre outras coisa: “Diante da relativização subjetiva e libertária da experiência sexual, a tradição da Igreja afirma com clareza a índole naturalmente jurídica do matrimónio, isto é, o seu pertencimento por natureza ao âmbito da justiça nas relações interpessoais. Nesta óptica, o direito é realmente entrelaçado com a vida e o amor; como um seu dever-ser” (Discurso à Rota Romana, 27 de janeiro de 2007, AAS 99 [2007], p. 90).

Não existe, portanto, um matrimónio da vida e um outro de direito: só há um matrimónio, que é constitucionalmente vínculo jurídico  real entre um homem e uma mulher, um vínculo sob o qual se apoia a autentica dinâmica conjugal da vida e do amor.
O matrimónio celebrado, do qual se ocupa a pastoral e incide sobre a doutrina canónica, são uma só realidade natural e santificadora, cuja riqueza certamente dá origem a uma variedade de abordagens, mas sem que seja menos uma identidade essencial. O aspecto jurídico está intrinsecamente ligado à essência do matrimónio.  Isso é compreensível à luz de uma concepção não-positivista de direito, mas considerado do ponto de vista relacional segundo a justiça.

O direito a casar, o ius connubii, deve ser visto nesta perspectiva. Não se trata, isto é, de uma reivindicação subjetiva que deve ser satisfeita pelos pastores mediante um mero reconhecimento formal, independentemente do contexto efectivo da união. O direito ao matrimónio pressupõe que se possa e se destina a celebrar realmente na verdade da sua essência, tal como é ensinado pela Igreja. Ninguém pode reivindicar o direito de um casamento.

O ius connubii, de facto, refere-se ao direito de celebrar um autêntico matrimónio. Não se nega, assim, o ius connubii onde era óbvio que existem as condições para seu exercício, se falta, isto é, claramente as competências necessárias para se casar, ou simplesmente a vontade é contrária à realidade natural do matrimónio.
Neste contexto, reitero quando escrevi, depois do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia: “Dada a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou que tenham o máximo de cuidado pastoral na formação dos noivos e na prévia verificação das suas convicções sobre as obrigações exigidas para a validade do sacramento do matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam dois jovens a assumir responsabilidades que não poderão honrar  (cfr Propositio 40). É demasiadamente grande o bem que a Igreja e a sociedade inteira espera do casamento e da família fundada sobre essa união para não empenhar-se a fundo neste específico âmbito pastoral. O matrimónio e a família são instituições que devem ser promovidas e defendidas de qualquer possível equívoco sobre a sua verdade, porque todo e qualquer dano aqui provocado constitui na realidade uma ferida infligida à convivência humana como tal” (Exort. Ap. Pós-sinodal Sacramentum caritatis, 22 de fevereiro de 2007, n. 29: AAS 99 [2007], p. 130).

A preparação ao matrimónio, nas suas várias fases, descreve o Papa João Paulo II na Exortação apostólica Familiaris consortio, tem certamente finalidades que transcendem a dimensão jurídica, pois que o seu horizonte é constituído pelo bem integral, humano e cristão, dos conjuges e dos  seus futuros filhos (cfr n. 66: AAS 73 [1981], pp. 159-162), em direcção definitiva à santidade de suas vidas (cfr CIC, can. 1063,2°).
Não podemos jamais esquecer que o objetivo imediato de tal preparação é o de promover a livre celebração de um verdadeiro matrimónio, a sua constituição, isto é, de um vínculo de justiça e de amor entre os conjuges, com as características da unidade e indissolubilidade, ordenado ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, e que entre os baptizados constitui um dos sacramentos da Nova Aliança.
Com isto não é dirigido ao casal uma mensagem ideológica extrínseco, nem lhe é imposto um modelo cultural; pelo contrário, os noivos estão em posição de descobrir a verdade de uma inclinação natural e de uma capacidade de empenhar-se nesta relação entre homem e mulher.
E é dai que vem o direito como um componente essencial da relação matrimonial, radicado numa potencialidade natural dos conjuges que a doação consensual actualiza. Razão e fé combinam-se para iluminar esta verdade de vida, devendo, no entanto, permanecer claro que, como ensinou também o Venerável João Paulo II,  a “Igreja não se recusam a celebrar um casamento de quem está bem disposto, ainda que imperfeitamente preparado do ponto de vista sobrenatural, desde que tenham a correcta intenção de casar-se de acordo com a realidade natural do matrimónio” (Discurso à Rota Romana, 30 de janeiro de 2003, n. 8: AAS 95 [2003], p. 397).
Neste perspectiva, um cuidado particular deve ser colocada para que o acompanhamento da preparação ao matrimónio seja remoto, próximo, imediato. (cfr João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio, 22 de novembro de 1981, n. 66: AAS 73 [1981], pp. 159-162).

Entre os meios para assegurar que o projecto dos noivos seja realmente conjugal, implica o exame pré-matrimonial. Tal exame tem um propósito principalmente jurídico: assegurar que não há impedimento para a válida e lícita celebração das núpcias. Jurídico não que dizer formalista, como se fosse uma mera prática burocrática consistindo em preencher um formulário tendo como base perguntas rituais. Trata-se, isso sim, de uma ocasião pastoral única – a valorizar com toda a seriedade e atenção que se exige – na qual, por meio de um diálogo cheio de respeito e cordialidade, o pastor procura ajudar a pessoa a situar-se seriamente perante a verdade sobre si mesma e sobre a sua própria vocação humana e cristã para o matrimónio.
Neste sentido, o diálogo sempre conduzido separadamente com cada um dos noivos, sem medir a conveniência de outras conversas com o casal – requer um clima de plena sinceridade, no qual se deve destacar o facto que eles mesmo são os primeiros interessados e os primeiros obrigados em consciência a celebrar um matrimónio válido.
Deste modo, com os vários meios a disposição para uma cuidada preparação e verificação, pode se desenvolver uma eficaz acção pastoral visando a prevenção da nulidade matrimonial. Há que se empenhar para que, na medida do possível, se interrompa o círculo vicioso que muitas vezes se verifica entre uma admissão fácil ao matrimónio, sem a adequada preparação e sem um sério exame dos requisitos previstos para a sua celebração, e uma declaração judicial igualmente fácil, mas de sinal oposto, na qual se considera o próprio matrimónio apenas com base na constatação da sua falência.
É verdade que nem todos os motivos de uma eventual declaração de nulidade pode ser individualizada, ou mesmo manifestada na preparação ao matrimónio, mas, também, não seria justo dificultar o acesso ao casamento com base em presunções infundadas, como aquele de  acreditar que, hoje em dia, as pessoas seriam geralmente incapazes ou teriam uma vontade somente aparentemente matrimonial. Neste perspectiva, é importante que haja uma consciência ainda mais eficaz da responsabilidade a este respeito para aqueles que têm o cuidado das almas.

O direito canónico em geral, e em especial aquele matrimonial e processual, requerem certamente uma preparação específica, mas o conhecimento dos aspectos básicos e daqueles imediatamente práticos do direito canónico, relativos às próprias funções, constituem uma exigência formativa de primária relevância para todos os operadores pastorais, em particular àqueles que atuam nas pastorais familiares.
Tudo isto requer também que os operadores dos tribunais eclesiásticos enviem uma mensagem única sobre o que é essencial no casamento, em sintonia com o Magistério e a lei canónica, falando a uma só voz. Dada a necessidade de unidade da jurisprudência, confiada ao cuidado deste Tribunal,  os outros tribunais eclesiásticos devem adequar-se à jurisprudência rotal (cfr Giovanni Paolo II, Discurso à Rota Romana, 17 janeiro de 1998, n. 4: AAS 90 [1998], p. 783).
Tenho recentemente insistido na necessidade de julgar corretamente as causas relativas de incapacidade consensual (cfr Discurso à Rota Romana, 29 de janeiro de 2009: AAS 101 [2009], pp. 124-128).
A questão continua a ser muito actual, e permanece ainda posições incorretas, como aquela de identificar a discrição de juízo requerida para o matrimónio (cfr CIC, can. 1095, n. 2) com o pedido cauteloso na decisão de casar-se, tratando, assim, de uma questão de habilidade com um que não afecta a validade, quanto ao grau de sabedoria prática com a qual tenha tomado uma decisão que é, no entanto, realmente matrimonial.
Ainda mais grave seria o mal-entendido, se quisesse atribuir eficácia inválida às escolhas imprudentes feitas durante a vida matrimonial.
No âmbito da nulidade para a inclusão dos bens essenciais do matrimônio (cfr ibid., can. 1101, § 2) ocorre ter um sério compromisso para que as decisões jurídicas reflitam a verdade sobre o matrimónio, a mesma que deve iluminar tempo de admissão do casamento.
Penso, de modo particular, na questão da inclusão do bonum coniugum. Em relação a esta exclusão parece estar a repetir o mesmo perigo que ameaça a boa aplicação das regras relativas à incapacidade, consiste em procurar as causas de nulidade em comportamentos que não dizem respeito ao estabelecimento do vínculo matrimonial, mas a sua realização na vida.
Devemos resistir à tentação de transformar a simples falha dos esposos na sua vivência conjugal em defeitos do consentimento. A verdadeira exclusão pode ser verificada, de facto, somente quando afectada a ordem ao bem dos conjugues (cfr ibid., can. 1055, § 1), excluídos por um acto positivo de vontade.
Certamente, são excepcionais os casos no qual  faltar o reconhecimento do outro como conjuge, ou é excluída a ordem essencial da comunidade de vida conjugal ao bem do outro.
O esclarecimento desses motivos de exclusão do  bonum coniugum deverá ser atentamente avaliado pela jurisprudência da Rota Romana.
Ao concluir estas minhas reflexões, volto a considerar o relacionamento direito e pastoral. Esse está sujeito a mal-entendidos, em detrimento do direito, mas também da pastoral. Ocorre de vez em quando, favorecer todos os sectores, de modo particular no campo do matrimónio e da família, uma dinâmica de articulação harmoniosa entre pastoral e direito, que certamente se revelará fecunda no serviço oferecido às pessoas que estão se aproximando do casamento.
Caros membros do Tribunal da Rota Romana, confio a todos vós à poderosa intercessão da Virgem Maria, para que não vos falte jamais a assistência divina no desenvolvimento com fidelidade, espírito de serviço e frutos do vosso cotidiano trabalho, e de bom grado concedo a todos uma especial Bênção Apostólica.

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